Por conta de algumas histórias, para ornar e para fazer um exercício de cultura visual, é que ando vendo papagaios. Tudo começou com uma conversa sobre fotografias antigas de vitórias-régias e de coqueiros… E dois episódios também antigos, mas fundadores*.
O papagaio, detalhe de fotografia. Na vitrine do Palais Royal, caminho…
Foi por conta desses episódios, em tempos distintos, que acabei tomando gosto em observar, de forma lúdica e despreocupada, se, como e desde quando, aparecem papagaios representados nas pinturas dos museus, espaços que ando frequentando com gosto. Não é, todavia, uma observação sistemática, um propósito de pesquisa, é somente uma olhadela, um exercício.
Boa parte das vezes em que entro num museu ou galeria me esqueço disso, até, vez por outra, me deparar com um papagaio, um bicho estrangeiro na Europa. E, mesmo sabendo que existem coisas impossíveis de saber com precisão, principalmente quando se trata de imagens, pode vir a ser uma boa pergunta: como é que o papagaio aparece na pintura europeia, e quais valores lhe são agregados pelos artistas, em seus contextos específicos?
Posso adiantar neste sentido, como hipótese, que o papagaio é um ser ornamental, que atende aos padrões renascentistas vigentes quando aparece, para os navegadores e suas casas de além-mar. Ele entra no imaginário visual ocidental com os descobrimentos e mais especificamente com o descobrimento do Brasil. Ele seria uma das partes que representa a riqueza, em meio à barbárie dos primeiros séculos, que caracterizariam os habitantes abaixo da linha do equador. A parte que foi levada para o enriquecimento das nações.
Confirmado: http://parrotmuseum.wordpress.com/tag/renaissance/page/2/
(Mas já havia uma referência em Aristóteles como “the indian bird”?)
Todo mundo sabe que o papagaio é ave brasileira, natural da Amazônia, apesar de que por todo o Brasil se proliferam espécies as mais variadas, cujas diferenças, muitas vezes são sutis, fundamentalmente de acordo com o sexo e regionais. Há uma teoria que atrela o aparecimento do papagaio, como o temos hoje, à elevação das Cordilheiras dos Andes.
(Vide uma pesquisa da Fapesp: http://revistapesquisa.fapesp.br/2007/10/01/no-topo-da-montanha/ )
Bicho inteligente que não somente fala, mas tem um bom ouvido (o que você falar perto dele, ele pode repetir). O que diferencia o papagaio da arara não é a cor, mas o formato da cauda e o posicionamento dos dedinhos. Na arara a cauda termina em “v”, para as extremidades, e no papagaio é afinada. Já o papagaio tem um terceiro dedo para trás, o que pode ser também variável.
(para conferir, Tudo sobre papagaio: http://www.tudosobrepapagaios.com/ )
Portanto, existem papagaios vermelhos, as fêmeas principalmente. Como aquelas que aparecem na cartografia de Cantino, de 1502: bem sobre o Brasil, três papagaios, a ilustrar o Novo Mundo recém-descoberto.
Parte do Planisfério de Cantino, 1502
Na Iconologia da América, de Cesare Ripa (1593, 1618, 1709…), a figura principal trás um papagaio a seus pés, mas não somente. Ele seria a parte mais suave da representação, já que a figura feminina era uma devoradora de homens: praticante do canibalismo. Em edições seguintes (?), o papagaio daria lugar, nos pés da “americana”, a uma serpente ou um jacaré ou um tatu. Já na enorme tupinambá sentada na rede, que se admira ao avistar Américo Vespúcio, que lhe devolve o olhar, o papagaio não aparece, mas o tatu, o macaco e outros bichos de quatro patas, sim.
– Na alegoria do Ripa, à esquerda, perto do pé, também à esquerda, da canibal, um papagaio. No encontro com Vespúcio, o estranhamento dos mundos, não. Ambas as imagens são amplamente divulgadas em sites variados na internet, como em: http://www.jornada.unam.mx/2004/06/17/ima-alego.html e http://oridesmjr.blogspot.fr/2012/08/os-grandes-descobrimentos-geograficos.html
Ao lançar a hipótese do ornamento, comecei a me perguntar se não teriam sido os holandeses a assim o introduzirem de uma forma mais positiva, por suposto, edênica, mesmo no século XVI e no XVII? ou teriam sido os italianos? Nos quadros do século XVIII (tableux), destinados a alegrar os ambientes das nobrezas que enriqueciam com o colonialismo, ambos o fizeram. Os papagaios estão, por exemplo, nas barras, nos contornos, de enormes tapeçarias que se encontram nos Pallazios de arte*, em Florença.
Se não foram os holandeses os pioneiros em introduzir o papagaio, ave exótica e de belas penugens coloridas, certamente que eles deixaram incríveis registros do falante bichinho de penas, de uma forma menos ornamental, talvez, integrados às suas cenas cotidianas e alegóricas. Nas clareiras, no meio da vegetação, a acompanharem donzelas, pintadas pelos artistas da família Brueghel ou, mais tarde, na França, na época de Gustave Courbet (1819-1877), acompanhando as exóticas mulheres, nuas, das terras dos coqueiros.
Um quadro que está na National Gallery, em Londres, de um holandês chamado Jacob Jordaens, Portrait de Govaert van Surpele and his wife, 1636-1638, é bastante impressionante. É um quadro grande, ocupando quase toda a parede. Nele, uma mulher gorda, tão gorda que reluz de gordura e beleza, sim, e seu marido, ao lado. E, entre eles, um papagaio, na janela empoleirado, e um cachorro, embaixo da cena. Diz a legenda haver ali, na consonância entre papagaio e cachorro, e, por suposto, entre aquele homem e aquela mulher, a representação da fidelidade, atributo de ambos os bichinhos.
http://www.nationalgallery.org.uk/cid-classification/classification/picture/jacob-jordaens,-portrait-of-govaert-van-surpele-(-)-and-his-wife/281794/*/x/90/y/-92/z/2
E então, como aparecem os papagaios? Associado a personagens que não teriam passado pelo “processo civilizatório”. Em alegorias. Nas cenas de paraíso, na marcação das estações onde ele é primavera e verão (como o corvo é outono e inverno). Acompanhando belas e vaporosas jovens. Aprisionado em salões cortesãos, a ornamentar pelas beiradas e referenciar algo exótico e colorido. Mas também em cenas caseiras, domésticas e em experimentos científicos. Nestes dois últimos casos entram nas fotografias.
Nas fotografias do Musée d’Orsay, confere, por exemplo, o papagaio nas fotografias de movimento do Muybridge, em 1887 (uma arara); em cenas domésticas, de Amélie Galup, 1897; e no atelier de Picasso, nas fotografias de Denise Colomb, em 1952, enervado entre objetos e objetos: http://www.photo-arago.fr/Archive/27MQ2JBKBZ0U/8/Picasso,-1952-2C6NU0THZ94C.html
Acorrentado a gradis, entre as sombras, sabemos, o papagaio fica intratável. Não é fácil, nisso, educa-lo, mas é possível: é um bichinho inteligente e temperamental. A possibilidade dele fazer algazarra tem a ver com a forma como é capturado. Se sofreu agressões ele vai reagir, bicando e emitindo aquele barulho repetitivo e insuportável que não somente imita qualquer zoada ao redor, mas que também pode ser inconveniente, como um “papagaio de pirata”.
Hubert Robert (1733-1808)_Musée Cognacq-Jay
Mesmo em cenas bucólicas e melancólicas, na tomada – para os olhos -, o papagaio aparece como um cantinho de cor (e luz), algo que teria ficado de alegria. Visualmente, pelo menos, mesmo numa cena que poderia ser mais densa, ele contribuiria para alegrar o ambiente ou traria um final feliz (penso agora no papagaio morto de Delacroix e não sei mesmo se essa suposição vale (?); penso também na importância do papagaio de Felicidade, em Flaubert).
Um pouco confirmando isso, o Luís da Câmara Cascudo (1898-1986), estudioso da cultura popular brasileira, diz que o papagaio, como o boto da Amazônia, é um príncipe encantado que casa com a heroína que, depois de viver desventuras, o reencontra no reino de Acelóis! Talvez, por isso (?), ele seja tão representado ao lado de mulheres.
https://peregrinacultural.wordpress.com/2012/08/
Para ir concluindo sem concluir, e para comparar o papagaio com o único ser de asas que pode lhe confrontar em inteligência e oralidade, lembro de Edgar Alan Poe falando não do Retrato, mas de como elaborou seu mais incrível e talvez mais conhecido poema: o Corvo (1845). Ele queria um bicho que falasse, de penas, para repetir: “nunca mais”! Chegou a pensar no papagaio, mas deste, a melancolia fugia. Ele queria algo mais sinistro, para identificar na repetição oral do corvo um presságio de morte, algo que não corresponderia à visão de um papagaio. Somente um corvo para, mesmo sem ser necessariamente aquilo, mas em se tratando de produzir um efeito de ilusão, conduzir o personagem em seu devaneio apaixonado.
E fico pensando nas implicações da cena do papagaio morto de Delacroix. Uma paisagem composta ou compósita: natureza morta, cena de caça e paisagem à moda inglesa, pintada por um francês. Hoje em dia, talvez, meninas e meninos do Brasil devem estar mais acostumados ao tatu, ao pensarem na fauna local. Mas certamente o papagaio ainda é presente quando se quer referenciar aquela paisagem: colorido, mulheres, penas, Carnaval etc .
(Como numa propaganda bem atual da Air France (abril de 2014) – companhia aérea francesa, que vende passagens para o Brasil -, onde aparece uma moça, morena, pintada com cores de papagaio, principalmente nos olhos. Ela tem penas de papagaio e ao seu lado, um ser da espécie)
O papagaio, ainda, foi por muito tempo representado aos pés da figura feminina mas também ligado à imagem do brasileiro esperto e malandro, na figura do Zé Carioca (1942), tocador de pandeiro e morador dos morros, das favelas. Imagem construída pelo Walt Disney e que deu certo:
http://fr.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Carioca
Vigeu durante a guerra fria onde imperava o “espírito da boa vizinhança” que, depois, vai se estender junto com o verdeamarelismo, em 1970. Uma das décadas mais violentas da história do Brasil, em que muitos dos antigos selvagens foram dizimados em plena Amazônia, às custas dos grandes projetos de integração nacional, como a Transamazônica, que nunca foi concluída.
(…)
Talvez seja preciso dizer que, ao ornar, o papagaio faz parte da mitologia brasileira.
Referências para este post:
André GUNTHERT. Le dinosaure, figure des pouvoirs de la science: http://culturevisuelle.org/icones/518