Neste 1° de maio, a emergência de uma nova classe trabalhadora no Brasil

Em 1999, quando publicava “A nervura do real” Marilena Chauí, grande trabalhadora (neste 1° de Maio), professora de Filosofia da USP, que aprendemos a ouvir e ler com afinco, dava uma entrevista no Programa Roda Viva da TV Cultura. Ali a também professora da USP, Scarlet Marton, pergunta “ – quem era Marilena Chauí naquele momento”? Ela responde que, aos 58 anos, é uma pessoa que tem um “descanso, um sossego, uma paz interior muito grande”, e que sabia com clareza do seu lugar, quem era e onde devia atuar: “na Filosofia, na escrita, no debate político, como professora na Universidade, até a compulsória”, responde.

Ao desejo de retomar o Marleau Ponty, “pois o tem num olho e no outro olho o Espinosa: uma sinergia que a faz pensar”, acrescenta,“ eu quero estudar o Brasil”! E, “talvez, fazer parte de uma nova oposição que está à caminho”.

Se o Brasil era uma tragédia naquele momento, o que dizê-lo hoje?

Em 2013, atualizando-se com a experiência, magistralmente, novamente, Marilena dá outra entrevista, uma palestra, na verdade, numa Universidade em Goiás e a intensidade de seu pensamento é ainda mais forte, elegante, rico de sabedoria e vitalidade. Ela discute “Democracia e sociedade autoritária”, mas vai além. Veja:

Hoje, 2016, mais de 17 anos depois da primeira entrevista aqui repertoriada, voltam-se as condições de catástrofe, com o enraizamento do neoliberalismo, e a convocatória de que é preciso agir de novo, na volta às ruas: “pelo novo”, “pelo que ainda não sabemos qual é, para que ele apareça”, pela Reforma política.

Importante ouvir com atenção, entre outras questões de vital importância, a referência ao Congresso do Brasil (que vimos tão recentemente em vergonhosa atuação), como tendo sido espertamente formatado pelo Golbery, militar da época da Ditadura, nos últimos dias de vigência formal daquela. Formatação que vai fazê-lo inoperante. Por isso a necessidade premente da Reforma política (2013), que mude essa configuração.

A discussão do mito da não-violência no Brasil, que dá suporte às ideologias; as dificuldades de instituir e conservar uma democracia no Brasil; as práticas liberais e a formatação do Estado por essa via; o neoliberalismo e as mídias: de oligarquias à monopólios; a corrupção; as relações público-privado e a soberania popular; a diversidade social; a emergência de uma nova classe trabalhadora: a força produtiva da ciência e da tecnologia, sujeitos políticos da década que vem; e muito mais.

Vale muito à pena ouvi-la neste dia tão importante, o dia do trabalhador! Esclarecedor!

Veja também outros vídeos mais recentes (2015, quando o golpe já se anunciava e 2016, pela mobilização das universidades pela democracia). De engajamento :

https://www.youtube.com/watch?v=GbTB51BS89A

https://www.youtube.com/watch?v=q1Zw0z212h0

Ecos de ruína

Relendo Jean Starobinski esses dias, seu maravilhoso livro “1789, os emblemas da razão”, por conta das aulas sobre o Iluminismo e a atmosfera que envolve o processo da revolução francesa, retornei também ao Hubert Robert, a quem fui apresentada a primeira vez num dos pequenos museus de Avignon, no sul da França. Robert voltou a ser exposto nesses dias de 2016 (entre março e maio) nas galerias do Louvre. Galerias que ele, visionariamente, se empenhou em recuperar, morando ali mesmo, para fazer emergir um dos museus mais visitados hoje no mundo, talvez o mais visitado.

http://www.louvre.fr/expositions/hubert-robert-1733-1808un-peintre-visionnaire

Fiquei pensando na vigência desses emblemas nos dias de hoje: seria coincidência expor Robert, “o ruinoso” ou “o artista das ruínas”, neste momento onde o mundo parecer ter, também ou novamente, uma atmosfera de decadência, com tudo que tem direito dentro? déficit, juros altos, corrupção e corrupção de costumes, desvalorização de conquistas cidadãs, desmantelamento de instituições, evocação de discriminações, crise das migrações, guerras que alimentam regimes fascistas, fascismo redivivo…

No passado a própria natureza, o grande inverno de 1788, segundo Starobinski, veio forte, contribuindo para a “piora das coisas que já estavam ruins”. Inevitável que ao ser discutido no Brasil de hoje abram-se as portas da imaginação e as “realidades” se misturem. Começando, aqui, com esse calor insuportável, que deixa a todos mais nervosos! Diriam alguns.

Teria sido Hubert Robert, ele próprio, uma ironia, ao imaginar as ruinas, ao “retrata-las” e ao exercer a profissão de conservador curador afamado do vigoroso Museu? Sua arte é sintomática do iluminismo, que se voltava ao passado, aos clássicos, narrados como formas expressivas do presente; um mundo que olhava pra trás, para melhor usufruir do progresso que se sucederia. Mas os “cidadãos em vias de”, haviam aprendido a calcular. Repito aqui algumas das análises de Starobinski e até as simplifico.

Curiosamente, ao entrar no site do Museu do Louvre, que expõe Robert até o final de maio deste complexo ano de 2016 (gostaria de vê-la!), e ler os folders da exposição que me lembraram a visita à outros Museus de Paris, como ao singelo Jacquemart-André, me deu uma curiosidade de ver também algo do Fragonard (Jean-Honoré), amigo de Robert, desde quando viveram como aprendizes em Roma, e parei na pintura intitulada Le Verrou, vejam:

Jean-Honoré_Fragonard_009

Traduzindo Le Verrou para o português: o ferrolho, o trinco.

E fiz rapidamente uma ligação com a polêmica da semana passada, que denota o retrocesso que se abate sobre o cada vez mais necessário empoderamento da mulher no Brasil atual, trazido por uma revista bastante consumida por aqui, que é vendida para as famílias nos supermercados, onde se enaltecia uma personagem contemporânea “bela, recatada e do lar…”, a mulher ideal para aquela parte da população brasileira, conservadora, e, aos nossos olhos, decadente, que quer apagar todas as conquistas das últimas décadas, e que, com isso, somente se lança vigorosamente no abismo, no abismo da História.

Virou mesmo uma campanha nas redes sociais. Veja o que diz o blog Donna:

http://revistadonna.clicrbs.com.br/comportamento-2/bela-recatada-e-do-lar-por-que-a-expressao-gerou-tanta-polemica-nas-redes-sociais/

O evento foi extremamente infeliz – mas provocou um bom debate -, entre tantos outros que temos passado nos últimos dias, que nos deixam indignados. Impulsionado pela tal da revista semanal que, tradicionalmente, combate o partido da Presidenta Dilma, que sofre um golpe maquiado de impeachment. Mas por que cargas d’água a bela pintura do hedonista Fragonard me fez recordar a polêmica? É uma pintura também polêmica: traz um amor, mais paixão, onde num gesto terno, eivado de desejo, o homem segura a mulher pela cintura, quando ela se levanta do leito e sutilmente mexe no ferrolho, sugerindo não permitir deixar a mulher ir embora. Ela parece corresponder, apesar de afastar o rosto do outro com a mão, tendo o braço quedado sobre seus ombros e a cabeça inclinada para traz, ao evitar um beijo. Sua outra mão vai estendida em direção ao ferrolho, pretendendo abri-lo.

Mas neste presente de tantas suscetibilidades a interpretação poderia ser outra.

Prefiro afirmar o ensaio da decadência, tendo ainda me vindo brevemente a ideia que Amar é… (Love is… como na campanha da Nova Zelândia dos anos 80, que grassou o mundo): deixar o outro livre, para ir onde quiser!

amare

Como já diziam os Novos Baianos, nos férteis idos de 1976. Caetano Veloso, Gil, Gal e Betânia, cantando O Seu Amor, ame-o e deixe-o:

https://www.youtube.com/watch?v=THGO65szumI

Referências:

STAROBINSKI, Jean. Os emblemas da razão. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

E a coisa se complexifica

Faço uma reviravolta para pensar essas coisas que se repetem (mitos), que remetem à origem e, em relação ao Brasil, entidade no rol das nações: “o gigante do sul” – como diz o Le Monde atual. Uma terra exótica, de paradoxos, onde existe “uma doideira geral”, cuja riqueza já foi bem medida e, acrescento, possuída e usada, que vive ainda hoje sob a marca da profunda violência do projeto de colonização, como dizia Josué de Castro*, e que treme nos dias de hoje.

Josué se admirava com a competência dos portugueses ao terem aliado violência e religião, na destruição de aldeias e matas, para erguer a “civilização do açúcar”.

Visitando hoje alguns lugares considerados importantes para as rotas comerciais da época em que o “Brasil foi descoberto”, fico encantada, claro, mas me vem sempre o pensamento que aquela riqueza toda que vejo é uma riqueza que subtraiu riqueza de um outro lugar. Fico com um sentimento de interesse, de querer saber, e com um vazio que vai ecoando como a dizer: “eles são tão ricos, como puderam ser tão devastadores?”

Lugar. Ainda vivemos esse paradoxo que assinala, ao mesmo tempo, a existência de “cabeças hipermodernas e tão arcaico”, com “coisas que não funcionam direito”: como continuam a dizer nos dias de hoje, aqueles que têm o “olhar de fora”! Ainda cruel, apesar de qualquer boa vontade que possa ali querer germinar.

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(Fotos de rua em Paris. Banca de revista em Saint Michel. Por ocasião da exposição Gênesis de Sebastião Salgado na Maison Européenne de la Photographie e do Paris Photo, novembro de 2013)

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Só penso em contestar esses padrões que se repetem, mesmo porque o espelho mostra as distorções.

Para quem é mais atento e mais disposto a chegar perto, o Brasil, de tanta riqueza subtraída, é ainda mais rico e diverso. Por termos sido tão violados, como poderíamos partilhar tamanho ofício que projeta tirar do outro humanidade?

Se abaixo do equador o ritmo é outro, curiosamente ou paradoxalmente “menos apolíneo” (apesar do sol), recente em muitas coisas, após o momento da simpatia, os valores são pesados e as virtudes pendem em detrimento das paixões. E isso tudo acontecendo, como diria a Marilena Chauí*, no momento em que o brasileiro se colocou no rol especial das grandes nações mundiais.

Os 500 anos do povo brasileiro e agora 50 anos do golpe de 1964: aquilo que estava lá na origem, é sempre referenciado quando se pretende compreender o lugar desse “outro esquisito” – o exótico (se é que há um lugar determinado de exotismo?) -, até para amenizar um tanto.

Sob torrentes de violências sucessivas, apareceu um povo que se encontra entre a virtude e o vício.

Vide novamente o filme de 1930, de Humberto Mauro: aquele olhar do pajé diante do padre pode me dar outras leituras, não somente e precisamente a que fala de submissão voluntária. “Sem lei, nem rei, sem Deus” em constante guerra civil. A terra fala!

É preciso renascer!

* sobre Josué de Castro (1908-1973), vide a Geografia da fome (1946), entre outros escritos. Castro foi professor em Vincennes (Paris 8), entre 1968 e 1973, onde faleceu. Época em que estava exilado do Brasil, por conta do golpe de 1964. Introduziu naquela universidade os estudos de Ecologia Humana:

http://www.rts.ch/archives/tv/divers/3435019-scandale-de-la-faim.html

De Marilena Chauí:

http://pt.scribd.com/doc/6605675/Marilena-Chaui-Brasil-Mito-Fundador-e-Sociedade-Autoritaria

 

O nome da rosa

Todo mês de abril começa pelo começo, como todo mês: pelo dia 1. O dia 1° de abril é o dia da mentira, mas é também lembrado, no Calendário dos brasileiros, como o dia que segue ao dia do golpe militar de 31 de março de 1964. Que acaba de fazer 50 anos. E este mês de abril, o mês das grandes águas que seguem a março, que fecham o verão no hemisfério sul, começou com algumas surpresas.

A surpresa veio, não por conta da divulgação dos resultados das investigações da “Comissão da Verdade”, instaurada para fazer aparecer os crimes do regime militar que já vêm de alguns dias. Algo esperado faz tempo! Estamos em atraso e, por mais cruéis que sejam as informações divulgadas pela imprensa brasileira, elas são extremamente elucidadoras, clareando uma época, até bem recentemente, de extrema obscuridade. Quanto mais esses dados aparecerem, melhor, sabemos disso:

http://www.cnv.gov.br

Como eu queria, em minha juventude, dos anos 1980, ter sabido de tudo isso que está sendo divulgado agora!? As mentiras e ocultações sempre soubemos que existia. Hoje, existem várias outras. Mas poder saber e ter mais clareza ainda do que já sabíamos. Que houve tortura, que há um projeto sistemático de deseducação do povo brasileiro que, apesar das manifestações de junho do ano passado (2013), parece, em grande parcela ainda, se deixar levar pelos grandes interesses comerciais e midiáticos. Poder saber disso é edificante.

Nisso, estava navegando no final de semana na internet, e acabei encontrando um vídeo, do Roda Viva, feito em 1996. O entrevistado, que visitava o Brasil na época, era o linguista e filósofo Noam Chomsky, professor da MIT – Massachusetts. Sempre bom ver através da perspectiva de um outro, de fora, ainda mais intelectual, o que se passa com nossa democracia e qual o nosso lugar nisso, nas relações entre hemisférios:

http://www.youtube.com/watch?v=6HvZfzHhW5k

Mas não era bem disso, como surpresa, que ia falar, muito embora tenha a ver com a questão do olhar, da possibilidade de variação de perspectiva – de ver e não ver através do olhar do outro. Ou melhor de como essas mudanças de visão são produtivas no sentido mesmo de reconstrução da história.

Ia falar da morte do Jacques Le Goff (1924 – 2014).

a rosa

Musée Cognacq-Jay

Recentemente, no mês passado (dia 19), fui para uma homenagem que a EHESS fez ao historiador, no auditorium François Furet, na Raspail. Não tinha pensado que veria o historiador, porque todos sabiam de sua idade avançada. Como não sou uma grande leitora da Idade Média – o que vai mudando -, comprei seu livro recém-lançado, Faut-il vraiment découper l’histoire en tranches? (algo como, em tradução livre: Será possível verdadeiramente cortar a história em fatias?): o motivo direto da homenagem. E vou lendo, em meio às leituras de fotografia.

Homenagem: http://www.canal-u.tv/producteurs/ehess/hommage_a_jacques_le_goff

Como alguns esperavam, Le Goff não apareceu, claro, mas falava em um vídeo de seu “pequeno livro inteligente”, como disseram por aqui, na imprensa local. E fico pensando, olhando para o Brasil de hoje, de todos os períodos, como é importante escrever grandes e profundas obras, mas também pequenos recolhes reflexivos, como pequenos frascos de perfume, não menos insinuantes e marcantes. O vídeo era o mote para o debate de três professores da École comentarem o historiador.

http://www.lemonde.fr/idees/article/2014/04/02/l-historien-des-petits-livres-intelligents_4394154_3232.html?xtmc=jacques_le_goff&xtcr=2

No primeiro de abril não era mentira: o historiador que estende a Idade Média até o século XVIII, com a ascensão da sociedade industrial, realmente se foi. Ficou sua obra a nos mostrar tanta coisa que é pouco falar assim. Era somente para registrar isso!

Para escutar Le Goff, contador de histórias:

http://www.franceculture.fr/personne-jacques-le-goff.html

 

Para ir pensando… o lugar de Germaine Krull

Em entrevista de 1952, Bresson referencia como influência, não elencada diretamente, mas ponderada, Germaine Krull, fotógrafa polonesa – que ele diz ser holandesa e que depois é registrada como alemã.

(o observador de hoje fica sempre pensando sobre a elaboração do outro que escreve e fala de sua própria fotografia. Fica possível montar inclusive uma cadeia de indícios, nem sempre correspondentes ao real do fotógrafo, que pode pelo menos sondar, refletir e fazer compreender, através da argumentação, o lugar daquele. Tipo: Bresson como estudante de pintura –  o colocar-se em sua própria arte e o relatar do cotidiano marcantes entre os artistas holandeses como os Brueghel e Rembrandt (Schama) -, teria associado Krull aos holandeses?… nessas horas sempre penso em Freud, no Moisés de Michelângelo (1914): e se não for nada disso? É preciso então persistir no estudo).

Após ser inquerido com qual idade teria começado a fotografar e, mais precisamente, com que idade começa a fazer ele próprio suas tiragens (cerca de 15 e depois 20 anos, quando amava estudar arte, pintura em particular, hábito que não abandonou durante toda a vida), Bresson responde a pergunta sobre se ele lia livros de fotografia para aprender, de como fazer as tiragens etc. Ele responde que sua prática era como a de qualquer amador e que não teria tido a curiosidade de se informar sobre o assunto. É quando ele diz se lembrar do trabalho de Krull. E diz : “Elle était un peu comme Berenice Abbott. (…) Elle prenait des photos de ports et de choses realistes qui m’avaient impressionné, avec leur petit côté ‘réalité pittoresque’”, p.15*.

Sobre Krull:

http://media.univ-paris3.fr/index.php?Itemid=76&option=com_hwdvideoshare&task=viewvideo&video_id=81

Observar Krull em Walter Benjamin, entre Sander e Bloosfeldt: “Se a fotografia se libera de certos contextos obrigatórios, (…), se ela se emancipa de todo interesse fisionômico, político e científico, ela é considerada criadora”, p. 105 (edição brasileira, da Brasiliense – 1987, da Pequena história da fotografia, de 1931).

Para ir pensando…

*Henri Cartier-Bresson. C’est très difficile, la photographie. Entretien avec Richard L. Simon (vers 1952). In: “Voir est un tout”. Entretiens et conversations (1951-1998). Paris: Éditions du Centre Georges Pompidou, 2013.

Notícia lá do Recife

Livro publicado. Tese de doutorado em História defendida em 2005. Eu a inscrevi no primeiro Concurso Cehibra* Fonte de Memória, em 2010. O objetivo do Concurso é o de divulgar pesquisas que são feitas na documentação da Fundação Joaquim Nabuco, no Recife. A Fundação possui um rico e grande acervo de fotografias do norte-nordeste do Brasil e também é referência no país.

Boa surpresa desses dias!

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E uma entrevista que dei ao Blog da Fundação:

http://www.fundaj.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=3345:fabiana-bruce-e-a-fotografia-do-recife-na-decada-de-50&catid=100:entrevistas&Itemid=877

* Cehibra: Centro de Estudos da História Brasileira.

Uma fotografia bruta

“Uma fotografia bruta”: seria essa a primeira ideia que, entre correspondências da época, Julien Levy parece identificar na fotografia de Bravo, Bresson e Evans, ao ponto de uni-los numa exposição.

Importante entender o Levy como parte de uma rede de significados e valores compartilhados, que vão sendo formatados em torno das imagens e dos seus usos, num continuum e descontinuidade que serão alvo dos estudos da sociologia das artes, por exemplo, da história da fotografia e cultura visual.

Debate que vai sendo travado e adotado num momento a posteriori até os dias de hoje, como nas práticas do intervencionismo simbólico da escola americana de Chicago*.

Se a peça que foi usada como chamariz da exposição de 1935 aparece na documentação como composição gráfica pintada em branco, a observação dessa mesma documentação, analisada pelos historiadores e por aqueles que se dedicam à conservação dos documentos de arquivo, nos mostram que houveram vários retoques* e que, em algum momento, após as várias tiragens e se quisermos pontuar a peça do primeiro evento, o objeto em si (em torno do qual o evento inaugural ocorreu), em sua objetividade*, ela teria sido vermelha – vermelha como a vida, como as “avant-gardes”.

Observar essas tiragens, coladas e montadas em papel cartão, possibilita ter em conta, em parte, a atmosfera do entorno, vivida por aqueles personagens que hoje tanto admiramos, inclusive porque seus nomes já foram inscritos no panteão da fotografia moderna e, até, para alguns, somente por isso, eles mereceriam nossa atenção. Mas nem sempre teria sido assim, a nos mostrar que as perguntas que hoje fazemos aos documentos precisam estar abertas ao desconhecido, ao não dado prontamente.

Para os pesquisadores da FHCB, por exemplo, a exposição de 1935, quando de sua “reconstituição” não aparecia nas trilhas correntes de indicação documental. Os jornais não noticiaram, não houve publicidade. Só foi possível uma reconstituição devido aos próprios documentos do Levy, em coleções publicas e privadas, aos arquivos dos três fotógrafos e a testemunhas exteriores. E ainda restou alguma impossibilidade, algo que não se realizou enquanto resposta, no quadro possível das perguntas da pesquisa.

Incrível, nesse sentido, pensar hoje que a fotografia de Bresson poderia ter sido não muito bem recebida quando de sua emergência. Interessante observar então a caminhada e as escolhas de Levy, como condutor disponível a esse novo que se dava, até a exposição de 1935 e mesmo depois.

Em dezembro de 1931, Levy leva pela primeira vez, também, Nadar e Atget* aos Estados Unidos. Seu pensamento com isso era o de ser a “avant-garde” da fotografia, procurando valoriza-la como forma artística. Assim é que ele pensava em fazer sua própria galeria, vinculando arte e fotografia. Em fevereiro de 1932 ele monta a primeira exposição individual de Evans e em março do mesmo ano inaugura a Modern European Photographers, onde figuram, entre outros nomes, o de Kértesz. Neste mesmo ano faz contato com Bravo, que lhe envia duas tiragens, na esperança de poder expo-las.

Entre Nova York e Paris, Levy aprofunda seus laços com os surrealistas e leva para a sociedade da norte-América a ideia da cultura de forma ampla, inclusive através de mostras de cinema experimental – The Film Society -, nas tardes de domingo, uma vez por mês. Em 1933, em Paris, abre a primeira exposição de Bresson e, desde então, estabelece grande correspondência com o fotógrafo, onde a ideia de uma fotografia “Anti-gráfica” aparece.

Com isso, fico fazendo as ligações, para ilustrar, para aprender, entre-tempos.

Vejam, por exemplo, esse trecho da série da filmes da BBC, The Impressionists (2006), em especial a passagem onde Paul Cézanne explica ao seu filho, também Paul, sua pintura das maçãs:

A série é interessante ver inteira, em seus vários capítulos. Observei com gosto o debate entre o olhar de Monet e o de Cézanne, na produção de séries visuais (vou chamar assim…).

E, variando sobre o mesmo, uma produção francesa de 2010, de François Lévy-Kuentz:

 

Levy

Julien Levy_1927

De família abastada, Julien Levy nasceu em 22 de janeiro de 1906, em Nova York. Em 1924, estudava em Harvard, curso que deixou um pouco antes de obter seu diploma, em 1927. Era particularmente interessado pelo cinema e pela fotografia. É quando decide se lançar num projeto de filme experimental com Man Ray, se reúne com Marcel Duchamp e segue para a França com este para fazer o dito filme que nunca se realiza.

É desta forma que o catálogo da exposição de 2004 começa a falar de Levy. Continuo:

 Na França, ele começa a frequentar círculos literários e artísticos e conhece sua primeira mulher, Joella Loy (filha do poeta Mina Loy) e, graças a Man Ray, descobre os trabalhos de Eugene Atget de quem compra algumas tiragens. Alguns meses mais tarde, Berenice Abbott o comunicará a morte de Atget e o aconselhará a comprar os negativos e tiragens existentes ainda na casa do fotógrafo, para salvaguardar sua obra – provavelmente destinada à lixeira. Levy a compra por mil dólares, pedindo a Berenice para jamais mencionar sua ajuda.

Dessa forma e à essa época (1927), é numa festa organizada por Caresse e Henry Crosby no Moulin du soleil (Moinho do sol) em Ermenonville (na Picardia), que ele encontra Cartier-Bresson, depois que este havia feito seu serviço militar em Bourget (na região da Île de France). Nessa mesma festa encontram-se Crevel, Breton, Ernst, Dali etc.

Voltando aos Estados Unidos com sua esposa, ele tenta trabalhar com seu pai, depois decide finalmente abrir uma galeria. Muito marcado por Stieglitz, sua primeira galeria é aberta em 1931, na Avenida Madison n° 602, Nova York, com uma exposição em homenagem ao seu mestre, uma retrospectiva da fotografia americana e sua evolução, do pictorialismo à ‘straight photography’ (fotografia pura).   

Traduzido diretamente de Documentary and Anti-Graphic Photography, 2004, obra citada.

Sobre Levy:

http://dla.library.upenn.edu/dla/pacscl/ead.html?id=PACSCL_PMA_PMA005

http://etudesphotographiques.revues.org/909