Ecos de ruína

Relendo Jean Starobinski esses dias, seu maravilhoso livro “1789, os emblemas da razão”, por conta das aulas sobre o Iluminismo e a atmosfera que envolve o processo da revolução francesa, retornei também ao Hubert Robert, a quem fui apresentada a primeira vez num dos pequenos museus de Avignon, no sul da França. Robert voltou a ser exposto nesses dias de 2016 (entre março e maio) nas galerias do Louvre. Galerias que ele, visionariamente, se empenhou em recuperar, morando ali mesmo, para fazer emergir um dos museus mais visitados hoje no mundo, talvez o mais visitado.

http://www.louvre.fr/expositions/hubert-robert-1733-1808un-peintre-visionnaire

Fiquei pensando na vigência desses emblemas nos dias de hoje: seria coincidência expor Robert, “o ruinoso” ou “o artista das ruínas”, neste momento onde o mundo parecer ter, também ou novamente, uma atmosfera de decadência, com tudo que tem direito dentro? déficit, juros altos, corrupção e corrupção de costumes, desvalorização de conquistas cidadãs, desmantelamento de instituições, evocação de discriminações, crise das migrações, guerras que alimentam regimes fascistas, fascismo redivivo…

No passado a própria natureza, o grande inverno de 1788, segundo Starobinski, veio forte, contribuindo para a “piora das coisas que já estavam ruins”. Inevitável que ao ser discutido no Brasil de hoje abram-se as portas da imaginação e as “realidades” se misturem. Começando, aqui, com esse calor insuportável, que deixa a todos mais nervosos! Diriam alguns.

Teria sido Hubert Robert, ele próprio, uma ironia, ao imaginar as ruinas, ao “retrata-las” e ao exercer a profissão de conservador curador afamado do vigoroso Museu? Sua arte é sintomática do iluminismo, que se voltava ao passado, aos clássicos, narrados como formas expressivas do presente; um mundo que olhava pra trás, para melhor usufruir do progresso que se sucederia. Mas os “cidadãos em vias de”, haviam aprendido a calcular. Repito aqui algumas das análises de Starobinski e até as simplifico.

Curiosamente, ao entrar no site do Museu do Louvre, que expõe Robert até o final de maio deste complexo ano de 2016 (gostaria de vê-la!), e ler os folders da exposição que me lembraram a visita à outros Museus de Paris, como ao singelo Jacquemart-André, me deu uma curiosidade de ver também algo do Fragonard (Jean-Honoré), amigo de Robert, desde quando viveram como aprendizes em Roma, e parei na pintura intitulada Le Verrou, vejam:

Jean-Honoré_Fragonard_009

Traduzindo Le Verrou para o português: o ferrolho, o trinco.

E fiz rapidamente uma ligação com a polêmica da semana passada, que denota o retrocesso que se abate sobre o cada vez mais necessário empoderamento da mulher no Brasil atual, trazido por uma revista bastante consumida por aqui, que é vendida para as famílias nos supermercados, onde se enaltecia uma personagem contemporânea “bela, recatada e do lar…”, a mulher ideal para aquela parte da população brasileira, conservadora, e, aos nossos olhos, decadente, que quer apagar todas as conquistas das últimas décadas, e que, com isso, somente se lança vigorosamente no abismo, no abismo da História.

Virou mesmo uma campanha nas redes sociais. Veja o que diz o blog Donna:

http://revistadonna.clicrbs.com.br/comportamento-2/bela-recatada-e-do-lar-por-que-a-expressao-gerou-tanta-polemica-nas-redes-sociais/

O evento foi extremamente infeliz – mas provocou um bom debate -, entre tantos outros que temos passado nos últimos dias, que nos deixam indignados. Impulsionado pela tal da revista semanal que, tradicionalmente, combate o partido da Presidenta Dilma, que sofre um golpe maquiado de impeachment. Mas por que cargas d’água a bela pintura do hedonista Fragonard me fez recordar a polêmica? É uma pintura também polêmica: traz um amor, mais paixão, onde num gesto terno, eivado de desejo, o homem segura a mulher pela cintura, quando ela se levanta do leito e sutilmente mexe no ferrolho, sugerindo não permitir deixar a mulher ir embora. Ela parece corresponder, apesar de afastar o rosto do outro com a mão, tendo o braço quedado sobre seus ombros e a cabeça inclinada para traz, ao evitar um beijo. Sua outra mão vai estendida em direção ao ferrolho, pretendendo abri-lo.

Mas neste presente de tantas suscetibilidades a interpretação poderia ser outra.

Prefiro afirmar o ensaio da decadência, tendo ainda me vindo brevemente a ideia que Amar é… (Love is… como na campanha da Nova Zelândia dos anos 80, que grassou o mundo): deixar o outro livre, para ir onde quiser!

amare

Como já diziam os Novos Baianos, nos férteis idos de 1976. Caetano Veloso, Gil, Gal e Betânia, cantando O Seu Amor, ame-o e deixe-o:

https://www.youtube.com/watch?v=THGO65szumI

Referências:

STAROBINSKI, Jean. Os emblemas da razão. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

… fotografia, morte da pintura?

Ao estudar a história da fotografia (Newhall, Rosenblum…) aprendemos que houveram grandes debates sobre o lugar da mesma em meio às artes, em seus anos iniciais. E que teria havido em parte aceitação e em parte repulsa ao processo fotográfico, em polos contrários que, portanto, não se tocariam. Como se depois esse debate tivesse desaparecido, esvaziado: a quem interessaria declarar que com a fotografia a pintura estaria morta?

Apesar do ecletismo reconhecido, cenário assim dividido, a eliminar as incertezas do exercício, da experiência e de possíveis trocas, num desses polos estaria o Delacroix e no outro o Delaroche.

Os estudos franceses sobre esses anos iniciais é hoje um tanto mais complexo, mas temos sido alertados que também na França, somente aos poucos as pesquisas vão quebrando algumas barreiras, como a do nacionalismo. Os quatro continentes da fotografia elencados pelo Frizot é muito mais articulado, não somente por conta das seletivas práticas comerciais, e pode nos dar brechas para enxergar muitas outras coisas que não pareciam nem testar nosso campo de visão.

Alunos de Delaroche, “o opositor”, por exemplo, são grandes nomes da fotografia na década de 1850, como Gustave Le Gray, Henri Le Secq e Charles Nègre, integrantes da Missão heliográfica (1851) e fundadores da Société française de la photographie (1854), que sucede a anterior. Isso não pode ser desconsiderado.

Mas isso é, ainda, somente uma das camadas.

Muitos estudos expõem e discutem a importância desse grupo de fotógrafos (Le Gray, Le Secq, Nègre e Baldus), para o que vai tornar-se a fotografia nos anos seguintes.

Eles são “os primitivos” que pela primeira vez ousaram expor suas fotos como arte (o Le Gray, nem citado pelo Baudelaire, tampouco por Benjamin*) e que, engajados num empreendimento científico a fotografar o patrimônio francês, pareciam não satisfazer plenamente à demanda exigida, dos contratadores da Missão heliográfica por conta de algumas fotografias por demais “ensaístas”.

Mas eram também documentaristas, pois as coisas não são assim necessária ou simplesmente contrárias, separadas: ou uma ou outra. Se Delaroche não fotografou, seus alunos o fizeram e o próprio Delacroix, em sua “pesquisa do inacabado” (estou simplificando), teria também, com a feliz e interessante contribuição do Eugène Durieu (que também tem seus vínculos com a Missão heliográfica e a SFP, levando Delacroix), fotografado.

maos de Delacroix

stigmata: De la croix

Ao procurar entender práticas fotográficas posteriores, percebi a importância de retornar a esses começos, perseguindo a ideia do regime de visualidade, de uma “economia visual” que quebra fronteiras (há mais quando o Delacroix ilustra Shakespeare), que se coloca atrelada a valores e conceitos do que poderia vir a ser arte ou não, pois pressinto que sempre esteve ali, presente, essa implicação pluridisciplinar. E, no caso bem especifico da fotografia, para poder compreender suas interfaces, com não somente as “artes de feira” (e a litografia não estaria ai, o São João Batista* da fotografia, como a chamava Benjamin ), mas também com a indústria, o mercado, a política a educação e a fruição de bens de valor monumental.

Delacroix por Riesener 1842

Delacroix fotografado por Léon Riesener, 1842. La valeur ajoutée de l’imperfection. Delacroix et la photographie, de Sabine Slanina in Leribault, 2008, p. 16.

Observem, por exemplo, esse artigo do Stephen Bann, de 2001, que inclui Lemaître (litógrafo) no panteão triunviral da fotografia, junto com Niépce e Daguerre. Bann é conhecido pelo livro As Invenções da história: http://etudesphotographiques.revues.org/241

Cf. também:

– Paul-Louis Roubert. L’image sans qualité. Les beaux-arts et la critique à l’épreuve de la photographie, 1839-1959, publicado em 2006. Resenha na Études photographiques 20/juin 2007:

http://etudesphotographiques.revues.org/1903

– Christophe Leribault (dir.), Delacroix et la photographie. Paris: Musée du Louvre/Lepassage, 2008.

 

Palavras, palavras, palavras…

Num pequeno Museu, em Saint Germain des Prés, na rua ao lado da Abadia, está havendo uma exposição de gravuras de Eugène Delacroix que ilustram, em meados do século XIX, as obras de William Shakespeare (450 anos em 2014), lido e admirado pelo artista.

museu delacroix_copia

Atelier do artista – Museu Delacroix

http://www.musee-delacroix.fr/fr/

Algumas litografias por onde as imagens foram reproduzidas, estão também expostas: elas que são a base gráfica dos trabalhos.

atelier de delacroix

Jardim interno do Musée Delacroix

Parei numa dessas gravuras, de 1843, onde Hamlet é inquerido pelo pai de Ofélia, Polônio (Ato 1, cena 5), que, suspeitando de sua loucura, lhe pergunta: “- Que lisez-vous seigneur? (- O que o senhor lê? em tradução livre). E Hamlet responde: “Des mots, mots, mots…” (- Palavras, palavras, palavras…)

Sabemos que o velhaco Polônio, pai da evanescente Ofélia, acaba morrendo pelas mãos do próprio Hamlet, que o acerta atrás da cortina, onde ele se esgueirava a espionar para o Rei Claudio, desafeto do jovem. Seu tio, que se casa com sua mãe, Gertrudes, antes mesmo do corpo de seu pai esfriar no túmulo. A história fantasmagórica e as próprias ações do Rei em posto, sugerem o assassinato do pai pelo tio, um fratricídio, que Hamlet se empenha em vingar, com vastos prejuízos.

Uma história bem conhecida, onde encantam também as inquietações do protagonista, e seu lugar no mundo, num mundo. Uma tragédia moderna:

http://www.histoire-image.org/site/etude_comp/etude_comp_detail.php?i=1050

Mas e por falar em Eugène Delacroix (1798-1863), um dos artistas modernos de Baudelaire e “a fonte” segundo Cézanne, fico repetindo palavras em torno, por conta da fotografia. Desconhecido. Sensível. Linhas. Paisagem. Composição. Cor. Flou. Inacabado. Trabalho. Utopia.

Palavras, palavras, palavras…

morte do papagaio2

Asas dos papagaio morto na paisagem de Delacroix

Fiquei ainda parada num quadro do Delacroix que está exposto no Louvre* e que se chama Nature mort aux homards, (1826-1827) – Natureza morta com lagostas, onde encontrei um papagaio, morto.

* Site do Louvre: http://cartelfr.louvre.fr/cartelfr/visite?srv=car_not_frame&idNotice=8937

E a coisa se complexifica

Faço uma reviravolta para pensar essas coisas que se repetem (mitos), que remetem à origem e, em relação ao Brasil, entidade no rol das nações: “o gigante do sul” – como diz o Le Monde atual. Uma terra exótica, de paradoxos, onde existe “uma doideira geral”, cuja riqueza já foi bem medida e, acrescento, possuída e usada, que vive ainda hoje sob a marca da profunda violência do projeto de colonização, como dizia Josué de Castro*, e que treme nos dias de hoje.

Josué se admirava com a competência dos portugueses ao terem aliado violência e religião, na destruição de aldeias e matas, para erguer a “civilização do açúcar”.

Visitando hoje alguns lugares considerados importantes para as rotas comerciais da época em que o “Brasil foi descoberto”, fico encantada, claro, mas me vem sempre o pensamento que aquela riqueza toda que vejo é uma riqueza que subtraiu riqueza de um outro lugar. Fico com um sentimento de interesse, de querer saber, e com um vazio que vai ecoando como a dizer: “eles são tão ricos, como puderam ser tão devastadores?”

Lugar. Ainda vivemos esse paradoxo que assinala, ao mesmo tempo, a existência de “cabeças hipermodernas e tão arcaico”, com “coisas que não funcionam direito”: como continuam a dizer nos dias de hoje, aqueles que têm o “olhar de fora”! Ainda cruel, apesar de qualquer boa vontade que possa ali querer germinar.

terra terra2

(Fotos de rua em Paris. Banca de revista em Saint Michel. Por ocasião da exposição Gênesis de Sebastião Salgado na Maison Européenne de la Photographie e do Paris Photo, novembro de 2013)

des

Só penso em contestar esses padrões que se repetem, mesmo porque o espelho mostra as distorções.

Para quem é mais atento e mais disposto a chegar perto, o Brasil, de tanta riqueza subtraída, é ainda mais rico e diverso. Por termos sido tão violados, como poderíamos partilhar tamanho ofício que projeta tirar do outro humanidade?

Se abaixo do equador o ritmo é outro, curiosamente ou paradoxalmente “menos apolíneo” (apesar do sol), recente em muitas coisas, após o momento da simpatia, os valores são pesados e as virtudes pendem em detrimento das paixões. E isso tudo acontecendo, como diria a Marilena Chauí*, no momento em que o brasileiro se colocou no rol especial das grandes nações mundiais.

Os 500 anos do povo brasileiro e agora 50 anos do golpe de 1964: aquilo que estava lá na origem, é sempre referenciado quando se pretende compreender o lugar desse “outro esquisito” – o exótico (se é que há um lugar determinado de exotismo?) -, até para amenizar um tanto.

Sob torrentes de violências sucessivas, apareceu um povo que se encontra entre a virtude e o vício.

Vide novamente o filme de 1930, de Humberto Mauro: aquele olhar do pajé diante do padre pode me dar outras leituras, não somente e precisamente a que fala de submissão voluntária. “Sem lei, nem rei, sem Deus” em constante guerra civil. A terra fala!

É preciso renascer!

* sobre Josué de Castro (1908-1973), vide a Geografia da fome (1946), entre outros escritos. Castro foi professor em Vincennes (Paris 8), entre 1968 e 1973, onde faleceu. Época em que estava exilado do Brasil, por conta do golpe de 1964. Introduziu naquela universidade os estudos de Ecologia Humana:

http://www.rts.ch/archives/tv/divers/3435019-scandale-de-la-faim.html

De Marilena Chauí:

http://pt.scribd.com/doc/6605675/Marilena-Chaui-Brasil-Mito-Fundador-e-Sociedade-Autoritaria

 

Champ/contrechamp

Champ/contrechamp

bresson-8

sombras do frevo_invertida

Martin Munkácsi (1931), húngaro (inspirador de Bresson).

Alexandre Berzin (1950), letão (Sombras do frevo, invertida).

Não é a mesma cena, claro! Contextos distintos e distantes, que não têm relação (?). O desafio é aproxima-las na montagem: champ/contrechamp. Sob a inspiração de Georges Didi-Hubermann – Seminário Cinema, história, política, poesia.

(em tradução direta: campo/contracampo, operação própria ao cinema, e, por suposto, à escrita da história com imagens fotográficas)

Sobre Munkácsi:

http://en.wikipedia.org/wiki/Martin_Munkácsi

Sobre Berzin:

http://www.revistadehistoria.com.br/secao/perspectiva/na-cadencia-das-sombras

Entre o olhar e seu objeto: o objeto olha de volta*

Ler Bresson e relê-lo comparando-o a Capa. Isso não é novidade alguma: esses fotógrafos, suas práticas e imagens fazem parte de nosso campo visual, do campo visual do século XX, aquilo que o Ulpiano Bezerra de Menezes vai chamar de “iconosfera”**.

Muitas das fotografias que “descobrimos” em arquivos e coleções estudadas vão nos remetendo de alguma forma a esses referenciais: por sua plasticidade, por suas formas, pela proposta, através dos lugares onde elas estão vinculadas. Acabamos montando uma rede de referências e referências das referências. Claro que, como escolha, é factível que você não remonte tudo de um mesmo (ou tudo do mesmo jeito), acho que nem poderia, lembrando Freud mais uma vez. Aí entra um “outro personagem de observação” que olha de volta e um outro ainda que avalia, cujos pés estão fincados em tempos distintos de feitura.

Nisso, lembro de um galerista que uma vez me inquiriu sobre um fotógrafo, que ele tirou das mangas da camisa, como numa mágica, para que eu reconhecesse a magia. O objetivo da pergunta era confirmar a abrangência e/ou profundidade do meu campo de observação.

Como mudar ou pelo menos questionar esse tipo de olhadela sugerida?

Ver fotografias não me garante necessariamente a instituição de uma memória grandiosa, forjada na cumulação e fincada no erro-acerto (sabe – não – sabe), apesar de me fazer exercitar a “fisioGnomia”. Da fotografia, alguma coisa é sempre possível de ser dita, refletida, por qualquer pessoa, se for lhe dada a chance, se houver disponibilidade.

Nessas situações sempre me lembro, para me desafogar dos controles e cobranças de um “saber bancário”, de Funes, o memorioso de Jorge Luís Borges e sua triste morte por congestão de tudo lembrar, mas de não conseguir refletir.

Funes el memorioso (com permiso): http://biblio3.url.edu.gt/Libros/borges/el_memorioso.pdf

Claro que está implicado  no ato de ver fotografia o lugar social do interlocutor. Uma não resposta precisa à determinadas informações remetem à uma formação cultural diferenciada, como demonstra Bourdieu: o “homem cultivado” nem precisa, muitas vezes, abrir a boca para demonstra-lo, porque aquilo já faz parte de sua instituição – como nas análises que o Elias faz sobre a sociedade de corte (e o “ser cultivado”, em Bosi).

Mas a experiência é algo que dá gosto ao tempo, decorre do caminhar, como diria Benjamin: “Quem encontra ainda pessoas que saibam contar histórias como elas devem ser contadas? Que moribundos dizem hoje palavras tão duráveis que possam ser transmitidas como um anel, de geração em geração? Quem é ajudado, hoje, por um provérbio oportuno? Quem tentará, sequer, lidar com a juventude invocando sua experiência?” – Experiência e pobreza, 1933.

Esse parêntese é somente para apontar (pois estarei sempre a escolher direções, de acordo com minhas perguntas e de acordo com minha própria experiência, meu tempo e fruição), na direção de duas questões que se relacionam e que vêm da leitura tanto do texto do Bourdieu, citado anteriormente (Distinções), quanto da releitura do Ulpiano, nessa tentativa que faço de aproximar o capital empírico/teórico anterior e aquele que vou adquirindo nesse ano sabático.

Vamos aos exemplos (alguma coisa é suposição), de visão: entre Bresson e Capa, um clássico e um romântico?  Por um lado, a luz em toda a parte, por outro lado, o foco de luz, marcando intensidades vividas distintas. Um movimento alegre, saltitante. Uma contorção, às vezes suave, outras vezes, densa, profunda. Um bom burguês, a admirar o Concerto para a mão esquerda de Ravel e um outro, de “cultura admirável”, imprecisa, filho de um alfaiate que vivia a apostar, como ele próprio por toda a vida. Um francês, bem cultivado, estudioso da pintura por formação e um húngaro (como todos os bons fotógrafos devem ser), com “capa” de norte-americano, inventado por si mesmo, que gostaria de ouvir, talvez, com seus companheiros de front um bom Bolero, do mesmo Ravel? Bresson que amava Bach, mas também Bonnard, sozinho, a flanar pelas ruas, perseguindo o “instante decisivo”. Capa, do jazz, sem Taro, dado às aproximações intensas com hollywood, sozinho, a se arriscar e dizer que ao fotógrafo era preciso se aproximar, sempre, para que a foto fosse boa.

(Sinfônica jovem de Goiás. Solista: Élide di Paula. Teatro Escola Basileu, França, 2012)

Sim, são os textos do Ulpiano e do Bourdieu que nos ajudam a refletir a respeito do visível e do invisível em torno desses fotógrafos e suas maravilhosas fotografias: de suas visões, alquimias de experiências estéticas e éticas. Mas são também as falas dos próprios fotógrafos que nos alavancam na compreensão da visão de cada um, daquilo que permaneceu em suas práticas e daquilo que foi possível mudar, em seus pontos de vista. Visões de efeitos históricos que nos atingem ainda hoje, e que nos fazem, um tanto, compreender a fotografia: nós que, do futuro, lhes devolvemos a olhadela.

Entendemos Bresson e Capa pelo que eles nos propuseram através de suas fotografias, sem prescindir de suas outras escritas. Mas são nossas escolhas, nossas perguntas, nossos pontos de vista (como somos e o que fazemos também), que se misturam e adicionam mais alguma coisa àquela primeira mirada, que nos remetem no tempo. Talvez seja por isso que estudar fotografia é um campo aberto, onde o como é variável no tempo (de espera)***: onde as operações do observador, estão sempre implicadas.

*Referência a um texto de James Elkins – The object stares back: on the nature of seeing (1996) -, ainda não lido porque ainda não encontrado por aqui, sugerido por Ulpiano Bezerra de Menezes, em Rumo a uma “história visual”**, de 2005.

Do Ulpiano, on line, ver:

http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-01882003000100002&script=sci_arttext

Também, sobre Capa: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=167018094007

Para ir pensando… o lugar de Germaine Krull

Em entrevista de 1952, Bresson referencia como influência, não elencada diretamente, mas ponderada, Germaine Krull, fotógrafa polonesa – que ele diz ser holandesa e que depois é registrada como alemã.

(o observador de hoje fica sempre pensando sobre a elaboração do outro que escreve e fala de sua própria fotografia. Fica possível montar inclusive uma cadeia de indícios, nem sempre correspondentes ao real do fotógrafo, que pode pelo menos sondar, refletir e fazer compreender, através da argumentação, o lugar daquele. Tipo: Bresson como estudante de pintura –  o colocar-se em sua própria arte e o relatar do cotidiano marcantes entre os artistas holandeses como os Brueghel e Rembrandt (Schama) -, teria associado Krull aos holandeses?… nessas horas sempre penso em Freud, no Moisés de Michelângelo (1914): e se não for nada disso? É preciso então persistir no estudo).

Após ser inquerido com qual idade teria começado a fotografar e, mais precisamente, com que idade começa a fazer ele próprio suas tiragens (cerca de 15 e depois 20 anos, quando amava estudar arte, pintura em particular, hábito que não abandonou durante toda a vida), Bresson responde a pergunta sobre se ele lia livros de fotografia para aprender, de como fazer as tiragens etc. Ele responde que sua prática era como a de qualquer amador e que não teria tido a curiosidade de se informar sobre o assunto. É quando ele diz se lembrar do trabalho de Krull. E diz : “Elle était un peu comme Berenice Abbott. (…) Elle prenait des photos de ports et de choses realistes qui m’avaient impressionné, avec leur petit côté ‘réalité pittoresque’”, p.15*.

Sobre Krull:

http://media.univ-paris3.fr/index.php?Itemid=76&option=com_hwdvideoshare&task=viewvideo&video_id=81

Observar Krull em Walter Benjamin, entre Sander e Bloosfeldt: “Se a fotografia se libera de certos contextos obrigatórios, (…), se ela se emancipa de todo interesse fisionômico, político e científico, ela é considerada criadora”, p. 105 (edição brasileira, da Brasiliense – 1987, da Pequena história da fotografia, de 1931).

Para ir pensando…

*Henri Cartier-Bresson. C’est très difficile, la photographie. Entretien avec Richard L. Simon (vers 1952). In: “Voir est un tout”. Entretiens et conversations (1951-1998). Paris: Éditions du Centre Georges Pompidou, 2013.

Como medir uma dobra?

A dobra da fotografia, em … 1851, 1871, 1888… 1927, 1935, 1940, 1950… 1965…  

Lendo o artigo de Gaëlle Morel da Étude photographique, n. 21 dezembro 2007/ Le marchand sans marché Julien Levy et la photographie, que anexei no post anterior, volto a pensar coisas já pensadas quando de meus primeiros dias de pesquisa por aqui, e que me fazem agenciar de alguma outra forma uma questão que já estava lançada em projeto (a ênfase no encontro) e num texto que li há algum tempo na Revista do Patrimônio Histórico Brasileiro n. 27 – Fotografia, de 1998, escrito pelo Michel Frizot, sobre os Continentes primitivos da fotografia.

http://www.iphan.gov.br/baixaFcdAnexo.do?id=3204

Uma questão que tem relação com as formas de apropriação da fotografia pelas nações, os usos no século XIX que replicam no século XX, que rapidamente a incluíram em sua história, como técnica que possui um papel importante nos processos de modernização*. Uma história pautada numa “análise linear”, rica em disputas de primazias, e interessada em construir uma unidade narrativa adequada aos padrões de visualidade que se instituíam em cada país, na época, e que pareciam ser um só (a ideia do centro), em torno do poder de ser moderno – vide: dominar. Um momento em que o mundo era empurrado pra frente, como máquina de vastas chaminés em plena produção. E, nisso, o lugar especial da França que, através de Nièpce-Daguerre e Arago, oferta ao mundo o invento: “a solução global e definitiva” (Frizot), atrapalhando a pesquisa e reflexão da fotografia.

Acompanhando a formação dessa outra rede da fotografia em solo norte-americano (muito embora este não seja meu objeto de pesquisa) é possível, mais uma vez, observar uma dessas facetas de apropriação do meio, diverso, e a invenção de uma história da fotografia por Stieglitz e pelo grupo a ele ligado. Ao ponto de se pensar a fotografia, a “verdadeira fotografia”,  como uma “arte tipicamente americana”.

Considerando-se as questões nacionalistas da época vemos que trata-se de mais uma das possibilidades do meio: a história da fotografia não é uma só, nem corre de uma única direção, num só sentido; e, talvez, com a fotografia, seja possível perceber mais claramente (?) a emergência de um novo paradigma para os historiadores – lembrando o Frizot.

A fotografia seria uma arte tipicamente americana? Já que os EUA não teriam uma tradição pictorialista, nem  mesmo uma tradição e/ou uma pintura forte? A sacada de Stieglitz foi profunda – e a questão é certamente alargada quando se pensa a institucionalização da arte (sua entrada nos museus) e a institucionalização da fotografia como arte. A partir da démarche de Stieglitz construiu-se toda uma visão da fotografia que ainda possibilitava a intervenção na prova (em decorrência e por adição à experiência pictorialista), mas que, com maior ênfase, indicava uma autonomia da fotografia sobre toda e qualquer arte, uma “straight photography”, fotografia pura.

Em sua passagem por Paris ele (Stieglitz) observara, no final do século XIX e início do XX, que não haveriam aqui avant-gards no campo da fotografia. Numa olhadela perspicaz detecta que em Paris a fotografia não estava sendo recebida, ainda, no meio das Belas Artes*. Importante assinalar que Atget que circulava pelas ruas de Paris só vai ser reconhecido em 1927 e, curiosamente, por um estrangeiro, um norte-americano, considerando-se a legitimidade da descoberta de Levy. E é Walter Benjamin, outro estrangeiro, quem reconhece Atget como um dos pilares que fundamentam o pensamento da fotografia, na sua Pequena história.

O que parecia predominar nessa Paris assim percebida eram as práticas simbólicas decorrentes dos ecos impressionistas que, a essa altura, estariam reconhecidos como os grandes artistas franceses, onde a fotografia figuraria como uma auxiliar da pintura*. Isso nos faz pensar o quão (e como) as artes eram institucionalizadas na França e, ainda em 1930, e muito provavelmente até 1950, década que reinventa a fotografia, e mesmo em 1965, quando Pierre Bourdieu, contratado pela Kodak, a observar a fotografia amadora que pipoca na prática fotoclubista, escreve seu livro Une art moyen.

Nas entre-linhas da leitura de Frizot percebia-se que faltavam pesquisas para mostrar a fotografia e sua diversidade. Mas isso foi em 1998…

Talvez seja correto observar uma certa cegueira dos franceses, por algum tempo, para com seus bons fotógrafos, melhor, para com aqueles que faziam uma “boa fotografia” à revelia do mercado e que, de alguma forma, romperam com técnicas consideradas francesas, pensando que aqui havia vencido o projeto comercial daguerreano-ainda-não-fotografia (menos Nadar, mais Blanquard-Evrard ou Disdéri), amplamente adotado, por suposto, nos EUA e no Brasil, onde a fotografia tinha sido enquadrada, quando muito, no rol das artes industriais, bem integrada ao déco.

Essas questões que observei nos meus primeiros dias de pesquisa em Paris, vejo, foram agora, nos últimos três meses, confirmadas pelas reflexões dos pesquisadores que encontrei por aqui, como aqueles que participaram do Seminário La photographie e le réel: exactitude, objectivité, document que se encerra esta semana, coordenado por Kim Timby e Laureline Mezel, da EHESS e da Paris 1/HICSA, referenciando mais diretamente a fala de Anne de Mondenard, Conservateur du Patrimoine à Paris.

Capture-d’écran-2013-10-31-à-18.03.44

http://blog.apahau.org/la-photographie-et-le-reel-exactitude-objectivite-document-seminaire-de-recherches-ehess-paris-cral-nov-2013-fev-2014-2/

A fotografia quando é vista como arte, seria uma arte menor, sem tradição? Ainda? Ela precisaria abrir fronteiras, mudar de posição, observar as variações de grau e ênfase dos recortes? Desafiar os pressupostos temáticos? Acessar de forma diferenciada essas fronteiras no tempo? (Lembro da Susan Sontag: fotografia como arte e o arquivo). A pensar…

– Foto-reprodução que ilustra o programa do Seminaire La Photographie et le réel: exactitut, objectivité, document – détail du positif sur papier albuminé de la planche V, « Sortie de la cataracte », in Édouard Meyer et A. de Montméja, Traité des opérations qui se pratiquent sur l’œil, Paris, H. Lauwereyns, 1871.